sexta-feira, maio 19, 2006

O trompete e a besta

Estas só. Esquece o redondel e as bancadas e o cercado vermelho que te envolve. Dentro do teu fato bordado a pedras preciosas e a linhas douradas sentes-te transfigurado num heroi, o centro das atenções numa festa onde o macabro se confunde com a raíz do medo. O homem contra a besta. Uma massa negra plena de furia e força de viver reclama para si todo um conjunto de mitos, o animal que personifica em si a irracionalidade da natureza na sua plenitude de sobrevivência. Deslumbrante. Nobre e lutador se quer, assim se honra o eterno desafio da supremacia humana. Que fracos seres somos, espectadores ávidos de glória perante os nossos medos. Mas tu não o sentes. És de pedra, andas com orgulho de guerreiro, és a derradeira esperança de um "bem contra o mal". Pisas a arena munido de uma ridícula capa, ludibriarás o teu destino e enfrentarás a morte se for preciso, a justeza desta dança assim o exige, mas tu sabes isso. Que se abra a porta e venha a fera, é tempo de lhe deixar cheirar o sangue da vingança. As primeiras investidas são de uma violência desmesurada, ele quer consumar toda a sua pujança numa derrocada fatídica, cumprem-se-lhe as razões que o seu instinto reconhece. Os teus pés mal se deslocam. Quiseram as sortes que o toureiro que inventou esta técnica fosse coxo, e não pudendo correr nas suas esquivas, desenhou uma forma quase estática de movimentos que roçam os limites da insanidade.
Jogas com a tua capa vermelha no rosto do touro, enrolas-te nela e rodopias pronto para a viragem raivosa daquele que pensava saber onde te escondias. Uma vez. Duas. Mais outra e outra, cada vez mais fluido, cada vez mais hipnótico. Os teus gestos começam a parecer de gozo perante o triunfo da ousadia sobre a força bruta. E de repente...de repente. Um som requebrado parte de um trompete no alto da praça. Flutua sobre a areia remexida pela dança, sobre o suor no pêlo negro, sobre o teu olhar concentrado no próximo passo, sobre uma vontade visceral de acreditar ser possível dominar o indomável. A banda solta-se de mansinho, as castanholas lembram-nos um Sul com mulheres de vestidos com folhos e rostos ciganos. Mas aquele trompete é uma ode às coisas belas. A magia daquela musica funde-se num olhar vazio de um touro que não compreende o porquê de não conseguir matar, no suspiro aliviado de gente que não quer ver morrer, e neste louco registo as notas sobrevivem...sublimes.


Ser humano é ter defeitos incontornáveis, e usurpar dos direitos de um animal por puro espectáculo de entretenimento é bárbaro. Inquestionável.
Mas eu gosto da minha vida com sal.
posted by P.A., 1:12 da manhã

2 Comments:

como gritei em frente ao cp.pequeno na 5f, dia 18 "tourada é tortura"
voltarei lá as vezes que forem precisas. e eu tb gosto da mh vida c sal.

gostei muito do desenho que consegues ilustrar com as palavras. parabéns, escreves mesmo muito bem.
commented by Blogger colher de chá, 5:04 da tarde  
Obrigado querida colher.
Hesitei muito em expôr esta minha dúbia forma de apreciar um espectáculo que transcende os limites do que é racional e justo. Desde pequeno fui habituado a assistir ao mundo das touradas como um legado de sensações vividas pelo meu pai na sua juventude. Como se de uma se tradição familiar se tratasse. Fui crescendo e acomodando a minha posição no mundo, e necessáriamente aprendi a justificar as minhas falhas com frases como "os animais são criados exclusivamente para aquilo", ou "o toureio a pé e os forcados (para mim as verdadeiras lides) são uma luta perfeitamente justa "...mas o azedume mental perdurou. Nunca deixei de me sentir tocado pelo olhar confuso do touro e os aplausos mórbidos de quem o subjuga. Hoje em dia encontro-me perdido nessa fronteira. Na intranquilidade e desconforto de valores perante o tratamento a um ser vivo, e no respeito pelo mesmo encontro a paz para a minha redenção. Mas mais uma vez sinto que uma dos meus maiores defeitos é não conseguir deixar de sentir. Gostava que Hemingway me ajudasse a reescrever um "Fiesta" para o século XXI. Impossível. Um bárbaro nunca se desculpa.
Beijinhos.
commented by Blogger P.A., 8:04 da tarde  

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