segunda-feira, setembro 04, 2006

São quatro as personagens deste filme.
Há a Mãe, que de corpo frágil e magro pela idade continua a deter toda a ternura do mundo. Dorme practicamente todo o dia, caminha suave e calmamente entre leitos escolhidos ao longo dos anos por conforto e por protecção. Lembro-me como se fosse hoje da primeira ninhada de criaturinhas que ela deu à luz, e o sítio escolhido de entre todos os esconderijos possíveis foi o meu colo..enquanto ronronava enternecida. De coração puramente cristalino, entrega-se aos afectos como se a sua vida dependesse de um afago humano para se sentir completa.
Há a Filha Faladora. Personalidade vincadíssima, susceptível, ciumenta, irascível, assustada, mimada até mais não. Sem sombras de dúvidas a mais complexa entidade animal que circula neste circo, tem vontades próprias, independências e caprichos. O seu território é defendido sem olhar a meios e detesta surpresas que lhe ponham em causa a sua segurança emocional (note-se que o sentir deste animal é de um cariz próprio de poeta ou pintor, as depressões não lhe são estranhas de todo). Herdou do Pai a capacidade de comunicar de forma eloquente, é verdadeiramente espantoso o quão expressiva consegue ser.
Há a Pitinha, enfant terrible, de nariz arrebitado e orgulho alto. Grande susto nos pregou quando decidiu esbanjar uma das suas sete vidas cruzando uma rua em pleno acto radical. É a mais nova, aquisição recente, e cedo se apercebeu que se sentar à mesa ao lado do dono mais velho com ar de suplica, ele será incapaz de lhe negar extravagantes petiscos (é absolutamente incrível o que ela consegue devorar, derruba por terra todos os conceitos de alimentação típica de um felino). Tem uma relação de pânico e ódio profundo com a Forasteira, qualquer coisa de visceral e com graves implicações neurológicas.
Há a Forasteira, que apenas vem passar férias neste oásis de confraternização animal. Rapidamente, com o seu espírito selvagem, cria reboliço e molda as ambiências de calmaria à sua imagem de furacão sem destino pré-traçado. Faz emboscadas, nega carinhos, gera conflitos e reage como se o mundo lhe devesse vassalagem. Pertença da minha irmã, aqui passa umas férias anti-stress, do género "campo-de-férias-de-guerrilha-militar".


"São 5h da manhã. Entro sorrateiramente em casa para não acordar quem tenta cumprir horários normais, a chave roda convicta na fechadura, a porta é fechada com o ritmo certo para não ranger. Tropeço em algo. Uma criatura esquiva ganha vida quando me ataca furiosamente o sapato esquerdo, sustenho a reacção de resposta porque cedo me apercebo do que se passa, e sobretudo, de quem o faz. Quando acendo a luz, vejo-a de corpo arqueado e rabo inflado em tom de desafio. A Mãe observa o cenário de cima de um móvel, de olhar lânguido. Espera um pequeno gesto de aproximação meu para soltar o seu miado de ternura nº59 e quedar-se no meu ombro, deleitando-se em prazeres ronronáveis. Nisto a Filha Falante, que todas as noites me recebe com longas e queixosas conversas, desce as escadas para me comprimentar. A Forasteira continua com olhar de pirata de faca na boca para tudo o que mexe, e a situação não melhora quando a Pitinha sai ensonada do quarto onde personificava o sono dos justos no leito dos seus donos.
Caos.
Estou sozinho num corredor com quatro personagens cheias de vontade de discutir. Não razoavelmente, entenda-se.
Penso rápido. Mãe no ombro para a Forasteira não atacar a mais indefesa, coloco-me à frente da mais nova para lhe proteger a fuga e avanço decidido, obrigando a louca a dar -me espaço. No momento certo, consigo encaminhar a minha conversadora para a protecção do seu território favorito, o seu porto seguro, o sotão. E juro...aquele segundo decisivo em que elas sentiram que tinham a hipótese de atacar/defender foi eterno.
Sobrevivo mais uma vez a esta selva caseira em que todos têm o seu espaço, a sua forma de estar, o seu felino requinte.
David Attenborough dos pequenos bigodes, eu sou."




P.S.- A todas as personagens foi atribuido um nome fictício, tendo a conta a preservação da sua exposição largamente mediática neste espaço. No entanto, qualquer semelhança entre os factos relatados e a realidade não é coincidência. É assim, mesmo.
posted by P.A., 8:19 da tarde

2 Comments:

o universo felino na perspectiva mais apelativa, só tu consegues brincar com as palavras assim...
numa palavra: genial.

adorei**

- a minha preferida é a Pitinha;)
commented by Blogger colher de chá, 2:43 da manhã  
Voltaste.. tive saudades... Conheço-lhes as formas, manias e feitios... e tenho saudades de todas elas!
Obrigado por me trazeres até mim..
commented by Anonymous Anónimo, 6:51 da tarde  

Add a comment