quarta-feira, novembro 22, 2006

pena ao vento

Foi naquele dia que percebi que as coisas seriam diferentes. Ela chegou estranha, agressiva mesmo. Tudo era motivo para reacções de repulsa, nunca mais esqueço aqueles gestos, e eu confesso que não entendi o porquê da falta de carinho, da ausência da peça de caça já inerte...pronta a comer. Parecia-me que pedir já não era opção. Tinha noção de que o meu tamanho já usurpava grande parte do ninho, cada vez que olhavam para a crescente desenvoltura do meu corpo sentia-lhes o brilho no olhar. Nunca cheguei a perceber no entanto, se era um misto de alegria e tristeza, ou apenas orgulho na genética.
Até aquele dia...

Na bolha que me protegia do mundo, tudo era perfeito, e a eles lhes devia o conforto de poder ser. Apenas ser e nada fazer para o merecer. Nascemos de graça, todos, e a vida ensina-nos a pagar por isso. Mesmo nessa inocência aveludada, sempre idolatrei o elemento onde eles se moviam, a própria geometria das minhas formas me indicavam o perfume do voo, o aerodinamismo nos sonhos. Desafiei, uma e outra vez, a miragem da distância ao solo, arrepiei-me com a incapacidade de tal suicidio. Gostava de os ver, lá em cima. Esticava as minhas asas e prolongava a imaginação nos seus movimentos cada vez mais fortes, mas sempre na presença do medo do Grande Salto. O mito era grande. Os meus irmão contavam-me horriveis estórias dos que não concretizaram o acto de sustentação e a gravidade tirou os seus dividendos.
Entre um coelho tenrinho ou um rato almiscarado, ela dizia-me que o Grande Salto era a coisa mais importante que iria fazer na vida. Sempre com a candura que nos conforta a alma...sempre falando como se o momento certo fosse longe, tão tão longe.
Até aquele dia.

No desespero da indiferença a que fui votado, comecei institivamente a dirigir-me para um ponto de fuga. Não era bem-vindo no meu lar. A amálgama de paus e musgo que me viu nascer agora sentia-se fria e desconfortável.
O seu olhar permanecia vitreo. Já não eram precisos gestos. Percebi que o Grande Salto estava próximo. O Grande Salto. Acerquei-me da ultima extremidade de terra onde sempre soltei as ganas de querer o impossível. Hoje iria ser o meu próprio heroi, o guerreiro que trava a batalha só, depois de todo o exercito o ter abandonado. O meu exercito era aquela segurança de patas no solo. As minhas armas tinham crescido, tornando-se letais o suficiente para matar medos. A batalha...esta vertigem interminável alimentada por ventos e um vazio magnético com sabor a fim.
Explorei mais uma vez os movimentos que observei ávidamente, fechei olhos e senti uma força em crescendo dentro de mim. Ainda olhei para trás uma ultima vez. Juro, juro que vi um sorriso triste. Um dia percebê-lo-ei. Não tenho grande percepção do que se passou nos instantes seguintes, foi um impulso (físico, mas sobretudo mental), uma queda desamparada, um corpo que reagiu automático e ensinado por instinto...como se sempre o soubesse, como se sempre soubesse que não há impossíveis. Depois? Fui heroi no primeiro dia da minha vida como adulto.
Aquele dia...
posted by P.A., 11:34 da tarde

3 Comments:

lindo... sabes que já há um ninho numa das árvores da praceta que viste nascer?
commented by Anonymous Anónimo, 10:28 da manhã  
Quando se fala em ninhos sou suspeita. Gosto deles e gosto da tua escrita, crias imagens muito bonitas :O) .
Quanto ao grande salto...
Bem, ao contrário dos pássaros que empurram as crias para fora do ninho, o "bicho homem" tem uma tendência terrível de as conservar junto de si :O) o que acontece , é que não sendo decisão dos progenitores, muitas vezes dão-se saltos antes do tempo para as quais não se está preparado. Mas quando se está, deve ser uma sensação incrível de liberdade. Eu dei o salto antes de tempo, já há muitos anos, mas consegui um equilíbrio perfeito no voo (modéstia à parte) :O)
Jinho
commented by Blogger Gi, 11:41 da manhã  
“O meu exército era aquela segurança de patas no solo”.

Confiança. Acreditarmos em nós é a melhor das estratégias. Há sempre "O" primeiro voo, mas haverão mais, e aprendemos a trabalhar a perícia e a objectividade. Serão tombos, razias, choques frontais, planagens sem rumo, loopings e mesmo aterragens de emergência…Mas interessa é continuar e chegar ao nosso (s)destino (s). Acreditar é o saber mais valioso porque, por vezes, nada, nem ninguém nos vale, senão nós próprios. O ninho que se deixa, proporciona uma armadura vitalícia, mais ou menos forte, que muitas vezes determina a nossa resistência aos impactos.
Gostei muito, contador de histórias.
commented by Anonymous Anónimo, 12:59 da manhã  

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