sábado, outubro 28, 2006



Sobes as escadas uma e outra vez, cabeça erguida, farejando o ar.
Procuras o quê, minha velhota?

Vasculhas cada esconderijo, cada recanto possivelmente perfeito para o acto que há muito perpectuaste. Lembro-me como se fosse hoje. Estavas disforme, essa elegância felina (nunca vi mais solene) era desfigurada pela bola gigantesca do teu ventre, eram muitos, nossa senhora, se eram. Miavas com desespero, não de sofrimento, mas de urgência. Cada armário, buraco de baixo de móvel ou cama foi considerado por ti como ninho de parto, mas escolheste-me. Ronronaste alto alto, subiste para o meu colo e apenas tive tempo de procurar uma toalha...era o teu leito. Fui o teu leito para trazeres os teus meninos ao mundo. Confiaste. De olhar lânguido enroscaste-te como podias, lambias-te, não tinhas posição nesse milagre intemporal, o teu corpo pedia-me o conforto possível em tão animalesco esforço. Um a um vi os teus filhos sair, uns seres minusculos mas já com uma voracidade tão grande em fazerem-se anunciar vivos...olhos completamente cerrados, uns miados guinchados e gestos torpes. Olhavas em volta e buscavas aprovação, não tinhas feito nada de mal, "apenas" eras mãe agora.
Trataste-os a todos com aquele amor. Nas bulhas intermináveis pela maminha mais apetecível, nas mudanças de espaço em que transportavas um a um na boca, nas tropelias que eles faziam contigo (dentadas, emboscadas e afins), nos sono que lhes velavas. Foste feliz em cada momento e hoje estás perdida, eu sinto-o.
Onde estão eles, minha gata?
Eu sei que todos estão ainda dentro de ti, ainda lhes sentes os pequenos corações. Não há como procurá-los mais uma vez nesta noite fria. Mas não me olhes assim, não fales com esse tom triste, nada posso fazer para os trazer de volta, é assim a vida, um dia todos temos de libertar o que amamos e protegemos, assim é a lei que nos torna singulares. Justo? Não, minha menina, não é. Eu sei. Nada pelo que passei até hoje me faz amealhar os céus do teu sofrimento. Esta noite estás só e entregue ao passado. Talvez ainda os ouças miar nalgum dos teus esconderijos...
posted by P.A., 2:25 da manhã

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