sábado, janeiro 20, 2007

O grito.

Era o segundo dia em que via a luz. Só havia saido uma vez daquela caixa verde, de interior forrado a veludo preto (sempre incompleto, desmontado), e os plásticos que me envolviam denotavam uma preocupação em me manter virgem.
Lembro-me da cara de espanto quando me viu, um misto de fascínio e respeito pelo medo da conquista. Tenho a noção de não ser fácil, obviamente.
Mas naquela tarde os dourados brilharam ao sol moribundo, no pequeno sotão fui adorado pela primeira vez. Estava composto o grupo, estavam lá irmãos de cordas e de ritmos, o ambiente era de festa quando me acolheram. As curvilíneas formas, os botões madre pérola, toda a complexidade (imensa) dos diversos mecanismos que compõem as tranformações nos sons, estavam excitados pelo toque. Anseavam o ar que finalmente iria percorrer todo o corpo num vento mágico que me faz dar voz ao mundo. Música. Para isto tinha sido criado. As mãos humildes de quem afirmava não ser conhecedor das minhas subtilezas, já se tinham rendido aos carinhos de cada recanto, os lábios já se acercavam do bocal preparando o primeiro sopro.
Quando o frenesim era grande, a guitarra dava o mote para um embalar constante da bateria...aí nasci.
Lembro-me de ver o brilho no olhar de todos quando anunciei a minha chegada.
Ah pois! Pensavam que era só fogo de vista? Que da boca pomposa só sairiam impropérios?
Enchi o espaço com atitude de quem é feliz por ser diferente, cortei o ar convicto de que tinha voz forte e imponente, que era líder, único.
A cada nova leva de sons, mais explorado era, o entusiasmo prendia-se não com a perfeição da melodia, mas com a harmonia de sentimentos de quem tocava. Embasbacado com tal potencial, finalmente fui entregue aquele que jurou lutar por mim, por me conhecer e adorar.
Brincou, riu-se, deliciou-se e voou por sonhos mais intimistas, e no fim, já sem plásticos, aconchegou-me no confortável veludo orgulhando-se das dedadas marcadas em reflexo dourado.
Era um pequeno sótão com música de fim de tarde, a abarrotar de luz composta por notas.
Lar do primeiro grito de um saxofone.



.... grazie mille David (drum & bass), Cabron (o mestre), Tiago (hmmm...pois.)
posted by P.A., 12:04 da manhã

7 Comments:

Pois é P.A... Muito bom..

Interessante esta a visão do Grande Saxofone que num pequeno sotão, despontou para a vida e para o Mundo..
Testemunha em primeira mão dessa bela tarde que concerteza iremos recordar nos tempos vindouros como uma tarde onde os grandes protagonistas foram.. os instrumentos musicais.. que de uma forma magnifica traduziram em melodia o sentimento que nos une.. a paz, a alegria, o riso, a cumplicidade e o prazer de estar entre... amigos... a desfrutar...
commented by Anonymous Anónimo, 10:37 da tarde  
Um nascimento é sempre algo de muito belo e o nascimento do teu saxofone não é excepção. As tuas palavras compuseram a melodia e que bom foi ler esta música feita de letras.
Jinho
commented by Blogger Gi, 5:34 da tarde  
ya...foi bacano, pena não ter havido, notas soltas clássicas virgens espontâneas puras e sinceras cor-de-rosa bonitas de alcool ou isso, ou gajas ou sei lá...pá, eu tive lá, e, foi bacano e....os cabrões a darem-lhe, mas faltava ali alguma cena, tipo gajas ou shots ou isso....pá podia ter sido melhor, foi bacano, mas pronto...podia ter sido melhor...agora, personificar o saxofone e lerem ..."os dourados brilharam ao sol moribundo, no pequeno sotão fui adorado"... sem o alcool e as gajas....imaginem só...pá idealizem o potencial da escrita se este cabrão tivesse todo mamado e tudo a jogar ó bótèlhon, a spinar, vodka na paredes, toplesses, tudo a cheirar em cima..." daquela caixa verde, de interior forrado a veludo preto"...isso sim, liam tipo...as profecias iluminadas do petesáxósaint pós próximos 10 mil anos...lindo
commented by Anonymous Anónimo, 10:04 da tarde  
e...pronto.
Apresento-vos Tiago Cavaleiro.

Sem filtros nem censura.
commented by Blogger P.A., 2:11 da manhã  
muito bom. a descrição do momento, do espaço, da sensação.
quase quase nos levas até lá.
quanto ao tiago, é um prazer conhecê-lo. ele que apareça por aqui mais vezes. gente sem pejos de vez em quando tb fazem falta :P
commented by Blogger colher de chá, 10:45 da manhã  
Seria o Gato Barbieri ou o Roland Kirk a bufar pujantemente no luminoso instrumento????
Let de soul roll in...
commented by Anonymous Anónimo, 3:13 da tarde  
AHAHHAH!!! nao posso deixar de me rir em casa sozinho depois le ler o brilhante comentário do nosso querido Mr. Knight!!! ahah´mas é como diz a dona colher de chá, gente sem pejo faz falta! e é por isso que amamos o nosso Mr. Knight de uma forma especial...um shotzinho brothers?! brindemos!! Embriaguemo-nos de vinho de música ou de poesia!..disse e bem o baudelaire!...
Foi óptimo, foi um despertar dourado bonito, natural, em companhia da velha e experiente bateria, já marcada pelos tantos e inúmeros beats impostos por quem a usa já de há tanto e tão bem, remendada das marcas que a vida útil, tocada, batida, pontapeada com a dupla pedaleira que frenéticamente lhe acaricia o bombo!!...
Um valente despertar, que lhe valerá um princípio de vida soprada com valentia. Como dizia e diz um grande meu amigo, A luta é diária, palavras cantadas num reggae improvisado por ele driado..E Agora, dear Pete, que a morna solidão aveludada da verde e segura caixa, não o prendam lá dentro, só e desmontado, inerte e sem vida...agora, que ele já sentiu o sangue que lhe brota no frio metal soprado dos quentes pulmões do homem, que não arrefeça, que cante sempre mais e melhor!!....
Da próxima, que espero para breve, há q ver isso, já se conhecem, o amarelo-saxo, o azul-guitarrae o vermelho-bateria!...e com mais força cantarão!....

E obrigado, pete, pelas palavras sempre tão entranháveis....
commented by Anonymous Anónimo, 12:39 da tarde  

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